Desde Volver, Almodóvar não nos prestigiava com o que ele sempre soube retratar melhor: o universo feminino. Ainda que mais tenso que as grandes tragicomédias lançadas pelo diretor, Julieta tem uma atmosfera leve do melodrama não-apelativo.
Julieta Arcos é uma mulher aparentemente bem resolvida. Em uma relação estável com Lorenzo, prestes a se mudar para Portugal, ela encontra uma ex-amiga de sua filha na rua e uma espécie de ferida se reabre. Em uma crise que afasta o companheiro e desiste da mudança, pelo menos de país, já que muda de apartamento, ela embarca em suas próprias memórias escrevendo uma espécie de carta à própria filha.
Essa estrutura do roteiro é interessante, pois vamos conhecendo a história pregressa não apenas em um flashback, mas em uma construção paralela que nos dá a dimensão da dor daquela mulher. Falha, apenas em alguns momentos em que ela narra coisas que viveu com a própria filha, perdendo o sentido da condução da história que antes tinha um tom de confissão. Talvez se ela narrasse o vivido, acrescentando algo que a filha não soubesse, poderia funcionar melhor.
Ainda assim, o filme é um competente melodrama que fala de encontros e desencontros, perdas e dores. Sobre despedidas. Há sempre alguém indo embora de uma maneira ou outra. Mas, acima de tudo, é sobre a culpa e as diversas formas erradas de se lidar com ela. Não por acaso a narrativa de Julieta começa com o homem no trem. A maneira como Almodóvar o apresenta constrói a imagem distorcida, fazendo o próprio espectador formular um conceito e se sentir “culpado” depois pelo estereótipo.
A direção de arte também nos dá sempre ótimos estalos. Como um momento-chave na vida das protagonistas onde há um quadro que é uma espécie de mancha preta escorregando. Como uma escuridão que se apossa de suas vidas. As cores das roupas de Julieta também lhe dizem muito do seu humor a cada etapa da vida.
Adriana Ugarte, que faz Julieta jovem, e Emma Suárez, que a interpreta na fase madura, possuem um trabalho muito bem orquestrado, nos dando mesmo a sensação da mesma personagem, percebemos a curva do tempo, as dores, mas quase não sentimos a mudança de atrizes. Tem inclusive um plano muito bem feito da passagem de uma para a outra. Cremos estar vendo a mesma mulher envelhecida.
Ainda que haja muita dor na trama e não existam alívios cômicos, no entanto, o clima geral do filme não é pesado. Há leveza na condução do melodrama que traz alguns estranhamentos e neuroses, mas busca um naturalismo em cena. Há referências a temas já utilizados pelo diretor em outras obras também. É como se entrássemos em um mundo conhecido.
No final das contas, Julieta é um ótimo filme. Não chega a entrar no top da filmografia almodovariana, mas consegue satisfazer com uma obra bem realizada, uma história envolvente e um equilíbrio entre originalidade e marcas autorais. É bom rever o bom de Almodóvar após o fraco Os Amantes Passageiros.
Julieta (Julieta, 2016 / Espanha)
Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro: Pedro Almodóvar
Com: Inma Cuesta, Adriana Ugarte, Emma Suárez, Michelle Jenner, Rossy de Palma, Daniel Grao, Darío Grandinetti
Duração: 99 min.
Amanda Aouad – Crítica Afiliada à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), é doutoranda em Comunicação e Cultura Contemporânea (Poscom / UFBA), especialista em Cinema pela UCSal, roteirista do núcleo Anima Bahia e dos curtas Ponto de Interrogação, Cidade das Águas e Dia de Cão. É ainda professora de Audiovisual, tendo experiência como RTVC e Assistente de Direção.
0 comments