A Guerreira Ferida
Há algumas décadas, nós, mulheres, nos encantamos com o reino empresarial masculino. Descobrimos que o mundo era muito mais vasto que o nosso lindo ‘lar doce lar’, e nos atiramos de cabeça nele. Enfrentamos todos os desafios, conquistamos títulos e cargos de chefia, crescemos na profissão e voltamos a nos sentir como as poderosas guerreiras de outrora.
Isso me fez lembrar uma história que ouvi há muito tempo sobre as mulheres amazonas, que antes se chamavam as Icamiabas. Esta é uma palavra tupi que significa mulheres sem homens, ou ainda, em outras versões, mulheres sem lei. Quando, hoje, dizemos rio Amazonas, nem suspeitamos que estamos evocando as Icamiabas. No começo, aquele era o rio das Icamiabas.
Quando Orellana, descendo os Andes, por volta de 1541, encontrou as cabeceiras do Amazonas, este era apenas um caudaloso rio que poderia levá-lo até o reino do El Dorado, onde o ouro se esparramava pelo chão. Até surgirem as Icamiabas, o rio era chamado de Rio Grande, Mar Dulce ou Rio da Canela, por causa das grandes árvores de canela que existiam ali. O encontro de Orellana com as Icamiabas mudou tudo. Estavam próximos de onde hoje se situam Parintins e Óbidos, quando foram atacados por um grupo indígena de homens e mulheres. Mas, o que chamou mesmo a atenção dos espanhóis foi o furor guerreiro das mulheres. Eram altas, robustas, de cabelos compridos e tez clara, e lutavam nuas, segundo o relato escandalizado do escriba espanhol. Elas é que lideravam o ataque. E botaram os espanhóis em disparada rio-abaixo.
Só muito tempo depois, já em terras espanholas, quando o fato foi contado ao rei Carlos V, o rio foi batizado de Amazonas, em homenagem às bravas mulheres guerreiras da Grécia. Havia uma comunidade muito antiga de mulheres guerreiras chamadas Hititas. Elas eram as sacerdotisas das deusas gregas e viveram por volta do ano 750 a.C. Esta comunidade foi destruída e sua saga foi contada, muito mais tarde, pelo poeta Homero. Foi ele quem lhes deu o nome de amazonas. E a partir daí surgiu a lenda de que elas eram mulheres sem seio. Cortavam-se com um facão para poder manejar melhor o arco e a flecha. Mas isto não é verdade.
A palavra ‘amazonas’ vem do grego ‘méson’, que significa interior, centro. Se juntarmos o prefixo ‘a’, que significa ‘privação’, em grego, teremos “algo que saiu do centro”, que se privou do seu centro. Historicamente, foi isso que aconteceu com as mulheres guerreiras Hititas. Elas deixaram os templos onde viviam em dedicação absoluta às deusas-mães, com seus cultos religiosos à fertilidade e sua visão de mundo feminina, e foram guerrear como os homens. Tornaram-se poderosas, independentes e extremamente belicosas. Construíram cidades como Delfos, na Grécia, castelos e templos riquíssimos. Contam as lendas que a rainha das amazonas na Ásia Menor, chamada Pentesiléa, desafiou o próprio Aquiles, o herói dos gregos. Depois veio Mirina, a rainha das amazonas africanas, que chegou a conquistar o Marrocos, na África. E a rainha Górgona, também conhecida como a Medusa, que inspirava o terror entre os homens.
Os mitos são a forma pela qual os povos antigos guardavam sua história e suas tradições para as gerações seguintes. Há algo muito grave sendo contado aqui. A análise etimológica da palavra ‘amazonas’ revela um mistério que tem a ver com algo que foi perdido ou esquecido. Seria o “centro” ou méson, em grego, a essência do feminino? O que teria forçado essas mulheres ancestrais a abandonar o seu ‘centro’? Teria sido em consequencia à degradação ocorrida nos templos dedicados à deusa Mãe? Sabemos que as antigas sacerdotisas da deusa foram transformadas em ‘prostitutas sagradas’ após o advento da sociedade patriarcal. Teria sido disso que fugiam? A ferocidade com que lutavam para guardar a sua independência dá uma pálida idéia do perigo que as ameaçava.
Tudo que temos são histórias, lendas e mitos. Cortar o próprio seio pode muito bem ter sido a forma como os espanhóis interpretaram o fato de que elas agiam como homens, ou seja, tinham-se mutilado daquilo que aparentemente caracteriza uma mulher.
Mas, há algo mais concreto que talvez possa nos auxiliar a encontrar uma resposta para esse mistério. Observamos que, nos últimos tempos, tem havido uma grande busca pelos conhecimentos antigos. Sobretudo, entre as mulheres, há uma procura por um certo tipo de espiritualidade que fale mais próximo ao coração. Depois do desencanto com o modelo masculino de sucesso e poder, as mulheres procuram por algo que seja mais verdadeiro e sintonizado com seus valores. E é aí que se deparam com um vazio de referenciais, uma falta de identidade, um não-saber como é o ser-feminino. Parece que, nas brumas do tempo, ele ficou esquecido, soterrado, esvaziado. As mulheres Hititas de hoje também perderam o seu centro. São as novas amazonas feridas…
Talvez não tenhamos ainda a noção do quanto é importante curar a nossa guerreira ferida. Resgatar a consciência do poder das antigas sacerdotisas das deusas. Para a mulher iniciada nos mistérios, a força não está nos braços nem no grito. Ela está na mente. Talvez as mulheres hititas tenham perdido o seu “centro” quando saíram dos centros de poder que eram os Templos sagrados e adotaram o modelo de força e conquista que é inerente à virilidade masculina. Hoje sabemos que o mais sagrado dos Templos é a nossa mente. Quando em paz, ela pode mover montanhas…
Penso que, para curar a nossa guerreira ferida, o primeiro passo é fazê-la lembrar-se de sua essência feminina, sua inteireza, seu ‘centro’ vital. Olho em volta e sinto que o mundo precisa das soluções que só um olhar feminino pode dar. Isso vale para ambos os sexos, pois o olhar feminino não é exclusivo da mulher. Mas, para entender isso é preciso resgatar a lembrança da essência do feminino. Aqueles que sabem das coisas vão concordar que, talvez, a nossa sobrevivência enquanto espécie e a do planeta dependam disso…
Escrito por: Mani Alvarez
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